O Brasil hoje apresenta inúmeros problemas no campo da efetivação de direitos de cidadania. Apesar de nossa Constituição ser considerada uma das mais progressistas do mundo e de nosso país ser signatário de importantes Tratados, Pactos e Convenções Internacionais na perspectiva do respeito aos direitos humanos de mulheres, negros, crianças e adolescentes, pessoas com deficiências, idosos, LGBTs, indígenas e populações tradicionais, ainda assistimos estarrecidos e indignados as cotidianas práticas de violência sustentadas pelo sexismo, racismo e homofobia, além de outras formas de preconceito e discriminação. Portanto, existe ainda um longo caminho a percorrer entre a igualdade formal (perante a lei), a igualdade material (feita pela lei) e as relações humanas realmente pautadas pelos princípios éticos: respeito mútuo, solidariedade, diálogo e justiça.
Muito embora a diversidade social pressuponha uma rica e positiva pluralidade de pessoas e grupos, estas diferenças são transformadas em desigualdades causando tensões e conflitos que levam os sujeitos a disputarem entre si melhores condições de vida e direitos, assumindo muitas vezes posições particularistas ou corporativistas, enquadrando-se perfeitamente nos valores individualistas e competitivos da atual sociedade capitalista. Em decorrência disso, a maior parte das organizações sociais tem atuado segundo agendas especializadas e em redes monotemáticas.
A partir daí, os ideais de lutas coletivas e de solidariedade entre diferentes grupos de reivindicação têm sido suplantados por movimentos sociais fragmentados ou exclusivistas. Tal fato contribui, por exemplo, para a reprodução de visões extremamente deturpadas e preconceituosas em relação a algumas propostas, como as políticas de ação afirmativa. Estas são baseadas no princípio aristotélico “tratar os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades”, que por sua vez busca consolidar a igualdade com respeito às diferenças.
Tendo em vista a construção de um Estado Democrático de Direito, na perspectiva da efetivação da justiça social, os diferentes grupos excluídos, marginalizados ou desprezados em relação aos direitos fundamentais, não podem ser tratados de forma a se estabelecer que uns sejam mais importantes que outros, pois todos devem ser vistos e tratados com prioridade. Sendo assim, entendemos que no campo da implementação das políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade, a situação atual exige ações mais ousadas, com políticas sociais efetivamente compensatórias e articuladas e não simplesmente meritocráticas, que privilegiam apenas alguns grupos de pressão e que ficam vulneráveis a determinados interesses políticos.
Neste contexto de injustiça social, na visão geral da sociedade, inclusive de grupos organizados e dos próprios governantes, os povos indígenas não são respeitados na sua dignidade humana e nas suas especificidades histórico-culturais. Não se faz o menor esforço para compreender que suas lutas e reivindicações são legítimas e igualmente importantes e prioritárias, tanto quanto as de quaisquer outros grupos sociais que vivem em situação de desigualdade. Ousamos dizer que os povos indígenas no Brasil são os mais discriminados dos discriminados.
As palavras de Ailton Krenak, uma grande liderança indígena do nosso país, são ilustrativas nesse sentido: “Aqui, no Brasil, os índios continuam tendo um status parecido com o de animais silvestres. Nós somos objeto da atenção do Estado enquanto seres que precisam ser preservados como fauna. Também temos a atenção do Estado como pessoas e indivíduos que precisam ser vigiados para que não entrem num processo de contestação do poder do Estado, de contestação da ordem estabelecida e de questionamento dos crimes que foram praticados contra o nosso povo. Nós somos a memória viva e um testemunho sempre muito explícito da história recente da ocupação desta região do mundo. Cada um dos nossos meninos sabe como foi que os brancos se tornaram senhores desta terra e quando nós deixamos de ser os donos”.
Se observarmos na atualidade as diversas notícias veiculadas nas mídias sociais, não será difícil perceber a triste realidade das várias aldeias indígenas espalhadas pelos estados brasileiros, tomadas pela violência crescente, prostituição infantil, uso indiscriminado de drogas, alcoolismo, suicídios, dentre outras situações.
A Constituição estabelece novos marcos para as relações entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos indígenas. Com os novos preceitos constitucionais, assegurou-se o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Pela primeira vez, reconhece-se aos índios o direito à diferença, isto é, o direito pela sua própria identidade étnica e de permanecer como tal indefinidamente. Nessa mesma linha também estabelece a livre determinação dos povos indígenas no nosso país.
Mas o que é isso? Nos termos da lei, os povos indígenas têm direito a determinar livremente sua condição política e perseguir livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. E, ao exercer seu direito de livre determinação, têm a autonomia e o autogoverno nas questões relacionadas aos seus assuntos internos e locais, assim como os meios para financiar funções autônomas.
Mas, na realidade, nada disso acontece. Nas narrativas e discursos de lideranças que se pronunciam para a sociedade envolvente é forte o sentimento de desespero quando se fala do sofrimento, das múltiplas formas de violência, da humilhação e das muitas mortes que ainda ocorrem. Recentemente um programa de televisão denunciou a invasão das terras dos yanomami por garimpeiros e o estado de inoperância ou paralisia da polícia, da justiça e do órgão de proteção aos índios. Esta arbitrariedade já causou a morte de 32 indígenas, contaminados pela malária no contato com os invasores. Por isso, o que as populações querem e tem lutado incansavelmente é o respeito às terras indígenas e a demarcação das que ainda restam, para que vivam com dignidade e de acordo com os direitos que a Constituição determina, ou que o bem viver possa voltar a acontecer em seus territórios.
O sentimento que percebemos na sociedade envolvente é que os povos indígenas são, na concepção da grande maioria dos políticos, governos e de produtores rurais, um estorvo. Seus direitos são tratados como penduricalhos e suas culturas consideradas atrasadas. O que impera na lógica desse pensamento dominante é a idéia de que alguns são seres superiores e os demais povos e culturas precisam submeter-se aos seus interesses e ideologias. E esse modo de pensar nada mais é do que o reflexo do quanto à sociedade não indígena, ou seja, a nossa sociedade, ainda é intolerante e racista.
[1] Etnoarqueólogo, professor-pesquisador do CEIMAM – Centro de Estudos Indígenas “Miguel A. Menéndez” – da FCL/UNESP. Presidente da Fundação Araporã - robson_arqueo@yahoo.com.br
[1] Socióloga, professora e coordenadora do Núcleo de Extensão e Assuntos Comunitários das Faculdades Integradas de Jaú, integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Direito na Sociedade Brasileira, da UFSCar, membro da Fundação Araporã - grasiela_lima@yahoo.com.br.
consolidar a igualdade com respeito às diferenças
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